quinta-feira, 29 de maio de 2008

Sobre Etnogênese no Nordeste e na Amazônia

Um diálogo literário com o Dr. João Pacheco de Oliveira Filho (Antropólogo do Museu Nacional - UFRJ).

De minha autoria - Wanderley Gurgel de Almeida

Quando o cientista social João Pacheco de Oliveira Filho [UFRJ], competentemente se debruça em prol de uma etnologia dos povos indígenas do Nordeste do Brasil (1998), além de gerar uma economia da produção etnográfica regional, reconhece que estas sociedades indígenas geralmente “costumam tomar o território como um fator regulador das relações entre os seus membros” (op. Cit., p. 54). Assim, propõe no texto, que há um ato político que o chama por territorialização que, para ele é:

[...] justamente, o movimento pelo qual um objeto político-administrativo — nas colônias francesas seria a “etnia”, na América espanhola as “reducciones” e “resguardos”, no Brasil as “comunidades indígenas” — vem a se transformar em uma coletividade organizada, formulando uma identidade própria, instituindo mecanismos de tomada de decisão e de representação, e reestruturando as suas formas culturais (inclusive as que o relacionam com o meio ambiente e com o universo religioso (Op. Cit., p. 56).


Examinando a categoria proposta por João Pacheco de OLIVEIRA FILHO – territorialização – haveremos de entender que o sentimento de identificação de uma etnia com o espaço geográfico em que habita, ocupa uma posição importante na regulação das relações sociais internas e externas. Para se ter uma boa noção do quanto isto é relevante, numa nota o Autor esclarece que:

Se na Amazônia a proporção entre terra/homem é de mais de mil ha por índio, no Nordeste, onde a população indígena é numerosa (porque já atravessou em gerações passadas os desequilíbrios demográficos vividos nas primeiras fases do contato), essa relação corresponde a 7,2 ha para cada índio (Nota 9, p. 71).

Mas e o estudo do contato? Ele tem se mostrado sem nenhuma implicação? Oliveira Filho reconhece que no Brasil, a Antropologia abre margem para debater o conflito interético pondo em implicação relação sociedade – natureza, esta última para além da restrição espacial, pois tanto na Amazônia quanto no Nordeste, percebe que a distribuição eqüitativa para ocupação homem e ambiente.
Um avanço que o Professor João Pacheco faz é que como o próprio título diz, tem-se uma substanciosa análise acerca dos obstáculos ao estudo do contato. Para a pesquisa efetuada por mim, o referido texto não é apenas uma referência a mais. Consiste na trilha ideal para entender os meandros, as voltas estabelecidas entre as etnias estudadas, apesar de que ele tenha dirigido a atenção para a relação entre tutores e os Ticuna, índios estudados pelo antropólogo alemão Curt Nimuendaju que habitavam as margens do rio Solimões, entre a ilha Parauté e o baixo curso dos rios abaixo da margem oposta da linha divisória do rio Putumá ou Içá, que evitavam as margens dos rios Amazonas-Solimões, por temerem os índios Omágua e Cambeba, seus tradicionais inimigos e dominadores.
Não posso omitir que foram vários os obstáculos encontrados para a realização da pesquisa empreendida por mim. E estes obstáculos em certa medida, se tornam também, um aspecto teórico a ser discutido, e discutido considerando aspectos contextuais regionais que só pude encontrar no trabalho do Professor João Pacheco. Integram o conjunto desses obstáculos as seguintes seções: 1) De problematização e 2) De teorização e metodologia .
Para começar, nas fontes escritas e audiovisuais encontradas por mim, em nenhuma delas se pode ver ou ouvir sobre problemas de contato interétnico entre Makuxis e Wapixanas. Há fartamente sim, sobre problemas surgidos quando do contato entre índios e não índios, sobretudo com o acirramento manifesto a partir da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, área em que as referidas etnias habitam. Uma diversificada produção de textos escritos e falados, ilustrados ou não, transcorreram durante a pesquisa de campo e a elaboração desta dissertação, um material tão vasto que tomaria uma margem estimável de espaço se eu fosse aqui abordar uma a uma. Mas sem nenhuma menção a problemas entre Makuxis e Wapixanas. Como problematizar algo que não está sendo percebido na atualidade?
O Autor com quem estabeleço a presente discussão provoca na primeira seção, indagações como: Como foi constituído o olhar do pesquisador? Quais as teorias e conceitos que o levaram a selecionar certos feitos como relevantes, fazendo silêncio sobre outros? Quais os pressupostos implícitos nas explicações que pretende fornecer? Tais interrogantes são por ele sustentadas a partir da premissa de BACHELARD: “É preciso formar a razão da mesma maneira que é preciso formar a experiência” (1968, p. 147). OLIVEIRA FILHO quer com elas, dar um roteiro que ajude na elucidação do que ele denomina de “obstáculo epistemológico” (1988, p. 24), enquanto anuncia o objetivo do trabalho escrito por ele que seria o de aprender a racionalidade de construção de algumas tentativas de resposta e como aí se cristalizam certas resistências ao progresso posterior da pesquisa. Para ele, o grande objetivo do texto etnológico seria:

Passar por um crivo crítico tais interpretações, pelas quais teorias científicas e tradições culturais pretendiam dar conta dos fenômenos aí incluídos. [...] Conceitos e categorias necessitam ser tratados não como ‘erros’ ou ‘aproximações’ inexatas e sim, pô-las em um ‘sistema integrado de conceitos, que permita refletir sobre certos aspectos da realidade, ao preço de dificultar de dificultara apreensão de outros’ [...] uma ‘catarse intelectual e afetiva’ (op. Cit., p 25).


Suas provocações me suscitaram uma compreensão em que meu olhar não é, pois, meu. É reflexo da consubstanciação entre o passado e o presente nos quais estive e das opções que fui fazendo regido por uma escala de valores sociais. Sim, porque havia escolhido ser professor e como qualquer outro exercício profissional, requer o respeito a normas de conduta que são elaboradas socialmente. Por sua vez, as teorias adotadas por mim neste trabalho não vieram de uma escolha pessoal, mas de uma seleção requerida pelas características constituídas da relação entre as etnias em foco, isto é, do caráter histórico do contato entre elas, da questão da ferramenta de dominação pelo ensino da língua Makuxi aos Wapixana, do casamento intertribal e mesmo do problema “eclipsado”, ofuscado pelo brilho de um conflito de dimensões maiores, no caso, entre índios e não índios. Tudo isto eleito por mim como corolário de encontrar as melhores vias para que eu venha contribuir positivamente para com a formação de professores indígenas, público alvo do meu exercício profissional.
Quanto ao campo teórico, segunda e mais extensa seção elaborada por Oliveira Filho, dá conta de uma revisão teórica que não pode ser deixada de lado. Lembra-o que a comparação sistemática de Tylor (s. d.) não responderia às demandas que a discussão do contato querem hoje, pois para ele, o que interessava era a classificação, no caso, a posição de uma determinada tribo numa escala evolutiva em relação ao passado. Refere-se também a Gusdorf (1974) assinalando o que propunha quanto aos “pontos de parada” na escala evolutiva e, adjunto a ele, o Barth (1969) elegendo as tribos como “entidades discretas”, ambos concebendo essas sociedades como agrupamentos recortados e estáticos de si mesmos. Neste ínterim, cita Bachelard (1970) quando já criticava um esforço de alguns etnólogos em desvendar os interiores como se fosse fácil o acesso ao pensamento inconsciente, visto serem do “reino dos sonhos” (Nota 7 – Bachelard, p. 27).
Pacheco reconhece que esforços foram feitos para se encontrar uma adequação teórica que comportasse novas abordagens para problemáticas já conhecidas, como sobre a interação e modernidade (Herskovits e Ralph Linton), assimilação (Znaniecki, Park e Pierson) sobre o encontro entre caboclos na Amazônia; trocas culturais e mudança cultural (Wachtel), perda cultural (Ribeiro) e sobre um índio genérico e uma antropologia da integração (Da Matta), geralmente discussões polarizadas entre a homogeneidade e heterogeneidade.
Esta preocupação ocupou o “norte” de minha conduta quando planejamento teórico e metodológico. Busquei criar nexos entre teorias de estudo do contato e conflito interétnico com a etnociência pela etnohistória, não por uma opção individual, mais porque nas raízes do problema – relações de contato entre Makuxis e Wapixanas – identificava implicações quanto à forma e conteúdo do modo como estas etnias elegem o ambiente não como um cenário, mas como um dos elementos pertinentes à identidade coletiva. Disto, está a luta pela permanência exclusiva destas etnias na Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Encontrei a primeira evidência dessa relação sociedade – natureza, no mito de origem Makuxi, relembrado anteriormente e representados na raposa e nos irmãos filhos de Makunai’ma e na sua inclusão no currículo pedagógico do Centro de Formação e Cultura da Raposa Serra do Sol, especificamente nos projetos Pomar, Gado e Herbário.
Quando apresenta o que para ele consiste em três realidades culturais, Pacheco refere-se a Malinowski (1938) para considerar que o relativismo cultural ou funcionalismo dissociou diferentes ordens de racionalidade, opondo-se a Andrey Richards (1938) quanto a existência de um “ponto zero de mudança social” que seria um instante de equilíbrio na vida tribal anterior ao contato. Para Malinowski, não havia condições de este ponto zero ser identificado, visto não ter por onde se observar algo inscrito no passado. Daí, o que restaria era captar as mudanças sociais e culturais sobreviventes que não estaria presente, como afirmara Mônica Hunter (1936; 1938) numa “cultura genitora” e igualmente a Fortes e Schapera que concebiam o contato como um fenômeno integrado cujo estudo da cultura das sociedades envolvidas, propiciaria alcançar um “estado de relativo equilíbrio”. Para Malinowski, já havia condições de se fazer uma “antropologia do nativo em mudança”. Tal postulado, requeria uma concepção de sociedade como “um conjunto de instituições que cumprem funções sociais satisfazendo a um todo coerente e relativamente equilibrado” (MALINOWSKI, apud Pacheco de Oliveira, 1975, p. 34), e de função compartilhada por Radcliffe-Brown, Fortes, Schapera e E. E. Pritchard.
Havia na concepção de Malinowski, segundo o Professor João Pacheco, uma assimetria para o processo de mudança que implicaria na necessidade de se conhecer o nativo, por ser o primeiro a ser afetado pela mudança cultural. E, na tese de Schapera, um pressuposto que impunha a necessidade de captar conteúdos concretamente atualizados pelas instituições coloniais nas situações de contato. Quanto para Fortes, caberia às agências de contato, aprender sobre a dinâmica da atuação da administração local e das missões. Para Malinowski, “agências de contato são corpos organizados de seres humanos trabalhando para uma finalidade definida, manipulando um aparato apropriado de cultura material e sujeitos a uma carta de leis, regras e princípios” (MALINOWSKI, apud Oliveira Filho, 1988 [1945], p. 65).
Não tinha como encontrar um “marco zero” como afirmara Andrey Richards. Afinal, antes da chegada dos primeiros grupos Makuxi à região, há indicações de que os habitantes Wapixana já mantinham relações sociais de conflito com seus vizinhos Taurepáng e Ingaricó. Há informações dadas por habitantes da Maloca Barro a mim que no começo, assim que chegaram era monogâmico, o que interpreto como um modo de garantir a receptividade com os “nativos”
Buscando os avanços feitos na Antropologia em torno das teorias de contato, ainda o Professor João Pacheco transita por idéias de Max Gluckman (1939; 1947). Deste, vê uma concepção de contato que, indiscutivelmente, vai à frente daquela proferida por Fortes e Schapera. Para Max Gluckman, “o contato não é um fator desintegrador [...]. A existência de uma única comunidade africana branca em Zululand [é] uma unidade de vida e não de costume – uma aldeia, cidade, acampamento, econômico e na vida social” (GLUCKMAN, apud Oliveira Filho, 1988, p. 39). Perspicazmente, o Professo João Pacheco também detecta nas idéias de Gluckman, uma boa noção de campo social, porque nele, habita o sentido de campo de interdependência [grifo meu]. Para isto, o Professor reconhece um avanço ainda maior porque com Gluckman, se defende um conhecimento histórico [grifo meu] superando generalizações comparativas que colide exatamente com as compreensões psicológicas anti-históricas, eliminando definitivamente, uma causa inconsciente para o estabelecimento de um conflito interétnico. Portanto, Pacheco de Oliveira concorda com Swart para reconhecer campo como “composto de atores diretamente envolvidos nos processos estudados”, entendendo que os participantes do campo de pesquisa trazem e praticam valores, sentidos, recursos e estratégias de relacionamento, “cuja extensão e características mudam com a adição de novos atores [por onde] um alto grau de consistência lógica e de relevância em face do objeto teórico de pesquisa, se torna uma questão-chave” (SWART, apud Pacheco de Oliveira, 1988, p. 41).
Conclui o Professor João Pacheco que, ora o exposto, fica inviável uma concepção natural de sociedade e, consequentemente, de conflito. Apoiado em George Balandier (1971), aponta que processos sociais em sociedades indígenas, têm o mesmo sentido no todo e no particular, ou seja, bem centrado no reconhecimento da ação na história e que se alinha bem com a idéia de fenômeno social total, premissa de Marcel Mauss. Assim conjugados, Pacheco de Oliveira suplanta o determinismo da idéia de instituição malinowskiana. Refuta, portanto, a crença de que o contato e a mudança cultural ocorreriam somente entre instituições homólogas (Oliveira Filho, 1988, p. 44).
No Brasil, este mesmo Autor recupera a categoria criada por Roberto Cardoso de Oliveira, a de “fricção Interétnica” bastante discutida entre as décadas de 1960 e 1980. Explicando como aplicar a abordagem de Cardoso de Oliveira, João Pacheco indica os passos: primeiro, ter em mente o objetivo de captar e datar os desdobramentos do contato através do tempo na perspectiva de auto-condução; a seguir, registrar ao máximo a situação de contato sob os aspectos competitivos e conflituosos da conduta tribal e não tribal, para então se obter a aplicação da concepção de fricção interétnica como uma “situação de contato entre duas populações ‘dialeticamente unificadas’ através de interesses diametralmente opostos, ainda que interdependentes” (CARDOSO DE OLIVEIRA, apud Oliveira Filho [1962: 127] 1988, p. 45). Para nosso Autor, não haveria um termo mais apropriado senão atrito [grifo meu] porque reúne conflito e interação continuada (op. Cit.), abolindo outras concepções como transmissão, adoção, assimilação ou incorporação, bem como por suplantar a concepção prévia de que de contato como “algo acidental e instantâneo... [que] pressupunha a condição de índio como passageira, levando os pesquisadores a não projetar nos fatos observados idéias quanto à ‘extinção’ (brusca) ou ao ‘desaparecimento’ (gradual) desses povos” (Oliveira Filho, 1988, p. 46). Tens, portanto, a partir de Cardoso de Oliveira, uma categoria a que qualificaria de mais resistente, reconhecida pela expressão de sistema interétnico [grifo meu], composto de dois subsistemas: o tribal e o nacional em oposições recíprocas, até porque afasta “uma visão negativa de conflito” que é substituída pela idéia de “desajuste temporário” (op. Cit., p. 46).
Cardoso de Oliveira sugere a idéia de integração social [grifo meu] designando “o processo responsável pela constituição desse sistema interétnico” (op. Cit., p. 46) que se traduzem em três níveis: o econômico, o social e o político. Esses por sua vez, adquirem um potencial de integração [grifo meu], categoria adjunta a de fricção interétnica, definida por Cardoso de Oliveira como “o grau de dependência que um grupo tem de recursos controlados por outro, o que indicaria a sua capacidade de integração no sistema interétnico” (CARDOSO DE OLIVEIRA, apud Oliveira Filho, p. 47). Conclui Oliveira Filho que Cardoso de Oliveira havia estabelecido uma analogia entre fricção interétnica e luta de classes.
Continuando seu corpo teórico, Oliveira Filho na mesma obra, refere-se a Bailey (1960). Faz isto trazendo à avaliação teórica sobre contato e conflito interétncio, particularmente uma concepção de aldeia [grifo meu]. Para ele, “aldeia não é um todo em si mesmo. [Mas] Uma unidade dentro de uma estrutura maior, onde existem lados individuais e relacionamentos indo muito mais além dos limites da aldeia” (BAILEY, apud Oliveira Filho, [1960: 267-9] 1988, p. 50). Outra categoria, elemento do ideário de BAILEY é o de arena [grifo meu]. Esta é concebida como sinônimo de campo ora para indicar setores dentro desse campo, ora indicando a existência de uma estrutura única de regras que delimitam, segundo Oliveira Filho, um tipo de competição política (BAILEY, apud Oliveira Filho [1960: 135], 1988, p. 50-1). Dentro desta arena, para Bailey, ocorreriam o conflito e a contradição. O primeiro designando aquelas disputas para as quais a estrutura dispõe de mecanismos corretivos e reguladores e, o segundo, aquelas outras onde não atuam tais mecanismos.
Para Oliveira Filho (1988) três grandes dificuldades podem ser encontradas por quem adote o quadro conceptual de Cardoso de Oliveira e Bailey, no momento da discussão etnográfica: 1) O papel fortemente passivo assumido pelas comunidades locais; 2) A despreocupação com fatores culturais e 3) Encontrar conceitos reais e não ideais. A primeira, pela condução forçada a que é levado o pesquisador a tomar a população local como meros atores, ou seja, a interpretarem papéis e não serem reconhecidos como agentes de domínio próprio; a segunda, a oclusão pelo mesmo ao não aparente, o sensitivo, as abstrações a que constituem os fatores culturais; e, terceira, embora levado a procurar o visível, deixe o pesquisador, de fazer representar fatores reais em conceitos reais, caindo no plano ideológico. Para Oliveira Filho (1988) o que o pesquisador em Antropologia deve buscar um,

processo concreto de pesquisa [que se dá] na sobreposição de três elementos: a) um conjunto limitado de atores sociais (indivíduos e grupos); b) ações e comportamentos sociais destes atores; c) um evento ou conjunto de eventos, que referencia a situação social a um dado momento do tempo (GLUCKMAN, apud Oliveira Filho, 1988, p. 55).

Trata-se do que Oliveira Filho chama de démarche construtivista que se pode, segundo ele, aprender das “relações abstratas e valores grupais a partir da observação e valores grupais a partir da observação da conduta manifesta” (op cit., p. 55).

Um comentário:

G.M. disse...

interessante o texto.