terça-feira, 27 de maio de 2008

Revolvendo conceitos

Para viabilizar um alinhamento entre conflito interétnico estabelecido entre índio e índio, carece de cautela na tentadora vontade de radicalizar sob o solo do Manifesto Comunista. Pois como diz Gohn:

elementos como socialização, processo educativo, interação social, autoconsciência, não-consciência, identidade coletiva e individual baseadas em fatores de gênero, preferências sexuais, etnicidade etc permaneceram fora das principais correntes marxistas de análise e reflexão. O processo político e seus níveis de autonomia também não foi um ponto central naquelas análises. Por isso, os temas que serão destacados pela maioria dos estudiosos marxistas dos movimentos sociais tem um ponto de partida nas questões estruturais, de forma a ter uma base para o entendimento dos conflitos sociais (ASSIES, apud Gohn, 1990, s. p.):


Mas, há espaço na Sociologia para vincular conflito com guerra como sugerem dicionários? Não. Sobre guerra, Santos de Oliveira apenas diz que “pessoas ou grupos podem canalizar sua tensão para a guerra ou a criminalidade” (op. Cit., p. 40). Uma concepção política ampliada para conflito no sentido político é mais bem caracterizada pelos cientistas políticos Bóbbio, Matteucci e Pasquino (1992) que, ao estabelecerem uma concepção para conflito, afirmam: “... é uma forma de interação entre indivíduos, grupos, organizações e coletividades que implica choque para o acesso e a distribuição de recursos escassos” (op. Cit., p. 225). E indicam características para que assim possa ser reconhecido como tal:

Dimensões, intensidade e objetivos. Quanto à dimensão, o indicador utilizado será constituído pelo número dos participantes, quer absoluto quer relativo à representação dos participantes potenciais [...]. A intensidade poderá ser avaliada com base no grau de envolvimento dos participantes, na sua disponibilidade a resistir até o fim (perseguindo os chamados fins não negociáveis) ou a entrar em tratativas apenas negociáveis [...] e objetivos [...], de mudanças no sistema” (op. Cit., p. 226).

Esses últimos autores advertem que a violência não deve ser tomada como índice de reconhecimento. Consiste apenas de um componente de sua existência, de uma quebra de normas pactuadas (idem, ibidem).
A partir do que Bóbbio, Matteucci e Pasquino (1992) sintetizam e apontam, dois grupos de pensamento podem ser formados: 1) daqueles que reconhecem um continuum [grifo dos autores]. Estes vêem harmonia e equilíbrio seja no grupo, sociedade e organização. Como integrantes deste encontram-se: Comte, Spencer, Pareto, Durkheim e Talcott Parsons. Portanto, nesta linha ideológica qualquer conflito é uma perturbação, uma quebra de um estado normal causadas por fatores extra-sociais que devem ser reprimidos porque é uma patologia social. E 2) do grupo em cuja composição encontram-se Marx, Sorel, John Stuart Mill, Simmel, Dahrendorf e Touraine. Para estes,

qualquer grupo ou sistema social [é] marcado por conflitos por que em nenhuma sociedade a harmonia ou o equilíbrio foram normais. Antes, são exatamente a desarmonia e o desequilíbrio que constituem a norma e isto é um bem para a sociedade. Através dos conflitos surgem as mudanças e se realizam os melhoramentos. Conflito é vitalidade (op. Cit., p. 226).

Já a guerra , apesar de haver registros sobre tantas nas mais diversas sociedades, só a partir de Maquiavel que ela passou a ser tratada como algo passível de um estudo mais sistemático. Para ele, guerra é um fenômeno controlável e previsível. Assim, um estado de guerra só pode ser entendido concomitante ao estado de paz, cujo debate ocorre na base das ciências jurídicas. Explica mas não a decompõe, sistematiza. Na ciência social Política, implica e pressupõe uma força armada, excluindo, portanto qualquer raiz personalítica, mas como o filósofo e cientista político Hobbes a definia no seu Leviatã: “the nature of war consisteth not in actual fighting, but in the known disposition thereto” (1974).
Para o psicólogo gestaltista alemão Kurt Lewin (1975), o conflito está no indivíduo como:

a convergência de forças de sentidos opostos e igual intensidade, que surge quando existe atração por duas valências positivas, mas opostas (desejo de assistir a uma peça e a um filme exibidos no mesmo horário e em locais diferentes); ou duas valências negativas (enfrentar uma operação ou ter o estado de saúde agravado); ou uma positiva e outra negativa, ambas na mesma direção (desejo de pedir aumento e medo de ser despedido por isso).


Nesta mesma ciência, conflito é para Salvatore Maddi:

um antagonismo psicológico que perturba a ação ou a tomada de decisão por parte da pessoa. Trata-se de um fenômeno subjetivo, muitas vezes inconsciente ou de difícil percepção. De modo geral, o indivíduo tem consciência apenas do sofrimento ou da perturbação de comportamento, originados do conflito reprimido” (apud Silmara Leithold, UFPR, 1985).


Para guerra, a psicologia parece sugerir ser uma intensão desta, ou seja, uma finalidade que se dá, um adjetivo. Para o psicólogo Oliver Zancul Prado (2008), a Psicologia ainda não encontrou um consenso para estudos sobre a guerra, mas arrisca denomina-la como uma “psicologia aversiva”.
Afinal, o que está deflagrado em terras de Roraima: um conflito ou uma guerra? Este ou esta “é culpa” de um indivíduo ou de um grupo, uma coletividade? Sabemos de invasões, liderança exercida, enfrentamentos judiciais, territórios questionados, grupos armados [porém bem ‘intencionados’] e muitas ações que vão desde o terrorismo psicológico às provas materiais como grupos milícias de mascarados, tropas fardadas e carros sem placas.
Não percebo uma relação conflituosa entre etnias Makuxi e Wapixana em nenhum dos padrões acima mencionados. Não há uma rivalidade entre pessoas. Isto exclui a marca psicológica, tanto no sentido de Kurt Lewis quanto em Salvatore Maddi ou segundo Oliver Zancul Prado. Mesmo tendo presenciado uma cena em que uma senhora Wapixana cuspiu no rasto de uma índia moça que passava, enquanto eu observava a um jogo de futebol sentado ao banco externo da quadra de esportes, me convenceu de uma conotação psicológica para este conflito, embora um sentido de contradição seja encontrado, por exemplo, quando por ocasião de uma índia enfermeira que visitara a minha residência em Boa Vista. Ela me dizia que na Casa do Índio, ambiente hospitalar existente em Boa Vista – RR, “jamais se interna um índio Makuxi com um Wapixana na mesma enfermaria, sob o risco de haver ‘briga’ dentro da própria enfermaria, pois um sempre desconfia do outro” (ANÔNIMO, 40 anos de idade – enfermeira).
Fazendo uma aproximação deste às condições políticas prescritas por Bóbbio, Matteucci e Pasquino, não contempla a totalidade destas. Se efetuarmos uma relação com aqueles que põem conflito na direção de que todo ele tende a se estabilizar em prol de uma harmonização, eu diria que não procede, visto que tenho percebido uma forte presença de dominação na forma de ocupação de papéis sociais bem definidos: todos os professores entrevistados nas duas escolas da Maloca Barro, são da etnia Makuxi. Isto sugere uma dominação pela ocupação de cargos influentes no centro da etnia, como entendo ser lá uma das funções do professor.
Uma informação importante que dá segurança a esta conclusão pode ser assim percebida:



O Núcleo Insikiran, com o objetivo de fazer um diagnóstico de estudantes indígenas na instituição, por meio do Sistema de Informações [o trecho do jornal apresenta um tópico frasal incompleto]. A primeira etapa do levantamento está em fase de finalização, com base nas matrículas realizadas no semestre 2008.1. O diagnóstico inicial deste semestre revela dados interessantes. Foram identificados, por exemplo, que a etnia com maior número de matriculados na UFRR é a macuxi (sic), com 184 pessoas, seguida da wapichana (sic), com 88. Na licenciatura intercultural estão matriculados 237 índios de diversas etnias. Destaque para o aumento da presença dos yekuana (sic), também conhecidos como mayongong, que vivem a noroeste de Roraima, divisa com a Venezuela dentro da área Yanomami. O grupo conta com uma população de 500 índios, dos quais sete estão matriculados na UFRR. Também freqüentam as aulas da universidade os ingaricó, taurepang e wai wai (sic) (Jornal Folha de Boa Vista, Especial: 22 abr. 2008).


O segundo grupo , classificado pelos três cientistas políticos, não o incluiria no critério sugerido por eles como procedente porque, como a história das duas etnias em foco diz, há fases em que ambas se alinham em defesa de algo coletivo, e/ou se rivalizam quando pela defesa da ocupação das representatividades superiores, isto é, quando estabelecem disputa eletiva, por exemplo, para a Presidência do Conselho Indígena de Roraima. E, nem sempre é de vitalidade, pois o que percebo é um crescente enfraquecimento do sentimento de coletividade, dentro e fora da Escola Pe. José de Anchieta e no Centro de Formação e Cultura Raposa Serra do Sol, quanto na própria organização política indígena no Estado. Antes da homologação, havia o Conselho Indígena de Roraima; com ela, a criação da Sociedade dos Índios Unidos de Roraima, esta última congregando aqueles contrários ao modelo demarcatório.

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